sábado, 29 de novembro de 2008
O Zé gosta dos GNR, eu também gosto muito mas melhor ainda é ler o Reininho
O ípsilon de vez em quando lá vai surpreendendo a malta e por vezes consegue-se ler uma pérola como esta, do maior personagem da pop portuguesa dos últimos anos (O Variações foi curto), Rui Reininho em discurso directo.
O homem tripolar
João Bonifácio
A dada altura, Rui Reininho, falando de Belém (Lisboa), diz: "Isto é um sítio muito interessante e muito mágico, talvez daí eu tenha pirado um bocado tematicamente. Quis fazer um disco à antiga, conceptual mesmo. Há uma história do princípio ao fim."
Isto saiu-lhe numa longa conversa com o Ípsilon em Belém, a propósito de Companhia das Índias", 13 temas de pop aqui estranha, ali directa, e o primeiro disco de Reininho a solo em 53 anos de vida. Na escrita das canções, gente muito díspar entre si, que vai de JP Coimbra, dos Mesa, a Paulo Furtado, dos WrayGunn, passando por Rodrigo Leão.
O disco parece abordar uma estranha noção de "positividade" - e Reininho revelou na entrevista um inesperado interesse por gongos tibetanos, reikis e afins.
Na tarde em que nos sentámos para conversar, Reininho estava particularmente cansado, depois de uma noite a filmar um videoclip até às tantas. A entrevista, mais que debater o disco, acabou por versar as muitas máscaras de Reininho, a sua inquietude, algum comodismo que se havia abatido sobre a carreira, tudo discutido com uma frontalidade rara por cá.
Já está a morar aqui [em Belém] há algum tempo?
Há um ano. Vim fazer o disco para aqui. O disco tem uma coisa muito agradável para mim, que é aprender outra vez. Ter de ir a casa das pessoas, ir ao Estoril a casa da Margarida [Pinto, escreveu "Triste S" para este disco] e do [Miguel] Cardona, eles ali à lareira com o seu piano, ir a casa do Rodrigo Leão. Fui fazendo consultas. Depois combinava com o Armando [Teixeira, produtor] - que é um dos casos clínicos mais interessantes da nossa praça, um tipo que ouve muito, tem uma discoteca fantástica de vinil, com seis ou sete versões do "Hair" e discos do Festival de San Remo - para o dia seguinte. "Às onze a gente encontra-se", e ouvíamos isto e aquilo. Podia ter sido uma manta de retalhos, mas tem quatro ou cinco canções na "mouche", são pop, são coisas que eu sei fazer. Depois tem coisas em que me aventurei - se calhar é o meu futuro.
O facto de uma "major", a Sony BMG, ter entrado no processo alterou o disco?
Eles não exigiram nada. Eu tinha meia-dúzia de nomes com quem queria trabalhar, gente que admiro - e pelos vistos isso é mútuo. As canções são a visão que as pessoas têm de mim. O JP Coimbra [dos Mesa, escreveu "Lados B"] dizia: "Isto é um bocado Las Vegas, um bocado Elvis, é muito interessante vestir estas coisas todas." A parte unificadora foi a produção - deve ter sido difícil aquele homem conseguir um som. Isto não tem aquela carga do jovem que chegou à coisa, não tenho um projecto. 'O meu projecto é...' Oh ninos!, projectos é para arquitectos.
Agora há outra vez putos que não gostam de projectos, tocam e acabou. Uns são seus fãs, os Pontos Negros.
Mas esses têm uma igreja por trás, isso é muito importante. Eu agora pratico gongos tibetanos e "healing", faço gente levitar a cinco palmos do chão - eu digo isto e as pessoas não acreditam. É um poder um bocado como aquela hipnose de pôr 40 mil pessoas a cantar.
Mas está mesmo interessado nesse tipo de coisas?
Estou, porque existe mesmo essa energia.
Mas o que é que sabe fazer?
Não posso dizer no jornal, senão parecia o professor Bambo. São gongos e taças tibetanas de "healing", para curar depressões e não sei quê. Há aqui na zona um tipo que me diz: "Estás a viver na parte de cima de Pedrouços, que é o lado do Bem, a parte de baixo são os gajos da missa negra." Eu apanho os malucos todos, sou o gajo que entra no metro e vem o criminoso, o serial-killer, o arrependido, o gajo que se vai atirar para a linha e acabou de dar um desfalque.
Mas o que é que estava a acontecer na sua vida para se interessar por...?
Sofrimento, sofrimento grande. E gente que morreu. Amigos, namoradas que morreram, que foram levadas pela heroína, pela sida. A minha função é um combate aqui dentro. Ser o "Dr Optimista" [uma das canções do disco] da história. Ver um amigo meu como o Zé Pedro, que tem também uma luz do caraças, livrar-se do álcool e do pior dos infernos, ver o sorriso daquele homem... aquele tipo agora é um santo, só espalha o bem e a harmonia onde está. Essas são as personagens que nós precisamos.
É uma coisa geracional, a heroína entra cá pouco antes de a sida surgir.
Nos bons tempos podíamos ser promíscuos porque só havia herpes. Depois começámos a perceber que a vida mata. Este disco é sincero quanto a isso: tem um lado de palhaçada que eu assumo, que também é bom para me esconder, o gajo do turbante, da bola de cristal [Reininho refere-se ao imaginário do disco]. Até comprei a minha bola de cristal, levei-a para casa, pu-la em cima da casota do meu cão, a luz incidiu e ia armando um incêndio. Mas tem um lado sério: há anos que faço acupunctura, nunca mais tomei um antibiótico nem anti-inflamatórios, nem cigarros, nem bebidas brancas - é o meu apartheid.
Mas agora fez uma limpeza?
Isso é porque não aguento. Continuo a fazer espectáculos como fazia há uns anos, de uma hora e meia. Em Guimarães fiz duas horas de espectáculo com uma banda sinfónica, a cantar contra cento e tal gajos.
A voz está mais limitada do que antes, não?
Não, está mais aberta. Hoje é que estou cansado, nem devia estar a falar, porque ontem foi violentíssimo estar ali [a fazer o vídeo] até às cinco da manhã. Acabei a noite completamente louco a saltar por cima de carros como se fosse o Conde Drácula, ao som do "Turbina e Moça".
É uma das canções que parece desenhada para si.
E foi, porque o [New] Max escreve de outra maneira. É um gajo do hip hop lá de Leça, do surf.
Tem um lado "new wave".
Sim, mas isso são as coisas que eu vivi. Nos anos 1970 apanhei com a cena de Camden [bairro de Londres]. O Billy Idol apanhava o mesmo metro que eu. A gente ia comprar o mesmo que eles, dava um cheiro e uau uau uau uau [onomatopeia para 'aceleração']. Aquilo marcou-me muito. Gosto daquele "Come back to Camden" do Morrissey, é quase de ir às lágrimas. "Come back to Camden and I'll be good". Volta para casa que eu desta vez vou ser bom - já disse isso a muitas raparigas, elas já não acreditam.
Porquê só agora um disco a solo?
Só agora é que tive tempo. Antes queria era fazer um filme, depois percebi que não sei fazer. Ainda ontem [nas filmagens] estava com aquela curiosidade, a ver como é que funcionava a câmara. Foi incrível: às cinco da manhã, a equipa louca, raparigas em hipotermia e de repente vou buscar outra personagem - eu sou tripolar - e desato a saltar por cima de carros e a queimar coisas. Desaparece a personagem e mete-se na caixa - espero que não apareça durante uma semana.
As pessoas com quem trabalhou são sugestões suas?
É tudo gente que eu conheço. Há quem diga que o "Bem bom" está um bocadinho fora, mas vem do [espectáculo de versões] Companhia das Índias: eu comecei com versões e aquilo é a cristalização do espectáculo. O samba ["Faz parte do meu show"] foi o Nuno Espírito Santo que me disse para gravar, é uma música vagamente pedófila e perversa.
O "Bem bom" também parece muito delicada e é uma canção sobre...
Sim, sim, é um "one-night stand". É maliciosa. Nós começámos a ensaiá-la e toda a gente se ria. Aquilo deu muito trabalho. A ideia do cravo é ser "Ligações Perigosas", cruel. Quem também me deu a benção para este disco foi o Peter Murphy, que conheci, é um aristocrata, e que me disse: "Muito interessante". Falámos sobre vinhos, sobre Nova Iorque, ele conhece o John Cale, eu conheço o Ricardo Quaresma.
Ficou a ganhar. O que é que o levou a escolher estes tipos para compor?
Conhecia-os. O New Max fez a produção do "Revistados" [disco de homenagem aos GNR], conheci-o na altura e fizemos concertos com eles. Isto é gente que eu encontro no rock e digo: "Então pá, não sei quê, temos de fazer uma coisa juntos." Com o Rodrigo Leão estava sentado em casa dele, a almoçar, com os putos todos - tem três filhos maravilhosos - e ele disse: "Agora vamos ver o que fazemos".
Não tem um certo arrependimento por não ter construído esse tipo de vida que o Rodrigo Leão tem?
Tenho, porque perdi muito tempo, não estava nos aniversários, não dei a atenção devida. Claro que queria uma coisa assim. Tenho um puto maravilhoso ali em Santo Amaro de Oeiras, um miúdo aventureiro que quer ir comigo para as coisas, está com imensa curiosidade. É um anjo de um gajo que me conhece como ninguém. Mas eu sou um bocadinho intranquilo. Gostava era de deixar os telespectadores tranquilos e ir ao Botão, a esses sítios que estão a chamar por mim e deixar-vos em paz - mas antes queria resolver este disco a solo, esta coisa de que toda a gente me falava há anos.
Não se andava a sentir acomodado?
Sim, senti. Sentimos todos esse status quo. E acho que percebi que isto ia acabar, aquela indústria acomodada, preguiçosa e filha da mãe que faz reedições a 20 euros quando já houve vinil, já houve CD.
O Armando é um especialista naquela área lounge. Podia ter feito um disco todo num registo cabaret.
Sim, sim, isso era o que as editoras queriam, mas eu não quis. Havia o "Bem Bom" e podíamos ter feito só versões e se calhar vendia mais às senhoras nos salões. Esta história é arriscada: ser rebelde aos 17 também já fui, difícil é depois, como dizia o André Gide. Fazer ruptura quando já está tudo estabilizado é muito mais difícil.
[Um senhor de aspecto muito respeitável cumprimenta Reininho].
Como é que tem este lado de pessoa respeitável quando nos últimos 30 anos deve ter sido respeitável umas duas vezes?
As pessoas aceitam. Eu sou muito Conde Drácula: o conde não faz nada que não lhe deixem. Nunca usei a hipnose para os concertos - aquilo é uma histeria para os putos, uma hipnose, e depois aquilo passa, mas eu não exerço isso. Cada coisa é uma coisa: festa é festa, depois salta-se para outra personagem.
Mas tem muito isso de mudar de personagem?
Sim. Às vezes é um bocadinho incontrolável.
Na vidinha normal, isso não é complicado?
Não, é fantástico. Dão-me mais fiambre e tudo. Vou ao supermercado e dizem-me: "Gosto muito da sua música." Eu digo "Queria 200 gramas." "Ah, leve 400, não diga nada." Agora não como fiambre por causa da minha religião. Daqui até ao Natal vou ser judeu, que é para não me chatearem.
Isso acontece porque o país é muito pequenino. Por isso acabou por ficar como o provocador oficial, vai à Televisão, diz umas coisas.
Se reparares bem, eu já não tenho directos. Há uma censura implícita. Saem-me coisas muito sinceras, mas as pessoas não gostam muito de sinceridade. Neste meio há pessoas que eu preferia não conhecer. Mas tenho o prazer de estar a jantar com o Peter Murphy e de repente estar a passar ali em Vila Nova de Gaia e está o Quim Barreiros: "Ó bacano, anda cá para cima." E eu fui. Subo o monte e ele: "Cumé que cantas o caralho do 'Inferno'? É em sol?" E fizemos um encore, "E que tudo mais vá pró inferno lai lai la la". É fantástico, não é?
O que é que o atrai na disparidade desses universos?
Gosto daqueles gajos, sinceramente. As conversas mais divertidas que eu tenho sobre o business é a ouvir o Zé Cid a falar - ele não entrou neste disco porque não deu. "Vem a Santarém, pá, então agora andas a fazer música com essas gajas que ninguém conhece? Tens é de que andar com o grande cantor." E é verdade, ele é um grande melodista, num país a sério ele seria um Liberace.
Um Elton John.
Um Elton John, um melodista porreiro e que cresci a ouvir. Quando vi o Quarteto 1111 disse assim: 'Fogo, gostava tanto de ser aqueles gajos ali em cima', como o Mike Sargeant, téu néu néu [onomatopeia de guitarra], Tozé Brito, eu queria ser o Tozé Brito. E agora canto a música dele.
A do Peter Murphy conhece o John Cale e eu conheço o Quaresma, priceless.
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