quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Esmé - Parte II

por Saki (Hector Hugh Munro)

"Pergunto-me o que andaria uma criança a fazer ali", disse Constance passados instantes. "A apanhar amoras. Obviamente." "Não me agradou o modo como berrava", continuou Constance, "parece que ainda tenho o choro dele nos ouvidos." Não trocei das fantasias mórbidas de Constance; para dizer a verdade, a mesma sensação de ser perseguida por um persistente gemido aflito, tinha-se insinuado nos meus nervos já exaustos. A precisar de companhia, chamei por Esmé, que tinha ficado algures para trás. Com uns quantos saltos enérgicos pôs-se a par de nós, e depois desapareceu à nossa frente. O acompanhamento de gemidos estava explicado. O ciganito ia firmemente, e imagino que dolorosamente, aferrado pelas presas da hiena. "Santo nome de Deus!" gritou Constance, "que raio havemos de fazer? Que vamos fazer?" Estou perfeitamente convencida de que no Juízo Final Constance há-de fazer mais perguntas do que qualquer dos Serafins jurados. "Não podemos fazer nada?", insistia ela lacrimejante, enquanto Esmé trotava ligeira à frente dos nossos cavalos cansados. Pelo meu lado fazia tudo o que me ocorria no momento. Vociferava, ralhava, adulava, em inglês, francês e em linguagem de couteiro; fazia gestos inúteis no ar com a minha chibata esfiapada; atirei ao animal a caixa das sanduíches; realmente, não sei que mais poderia ter feito. E lá continuámos a arrastar-nos no crepúsculo que se adensava, com a silhueta desengonçada arrastando-se à nossa frente, e a toada de uma música lúgubre pairando nos ouvidos. Subitamente Esmé mergulhou numas moitas espessas ao lado do caminho, onde não a podíamos seguir; o gemido cresceu para um guincho e depois calou-se completamente. Passo sempre depressa esta parte da história, porque realmente é bastante horrível. Quando o bicho se juntou de novo a nós, depois de uma ausência de alguns minutos, havia nele um ar de compreensão resignada, como se soubesse que tinha feito uma coisa que desaprovávamos, mas que sentia como perfeitamente justificável. "Como pode permitir que essa fera esfaimada trote a seu lado?", perguntou Constance. Parecia-se mais do que nunca com uma beterraba albina. "Em primeiro lugar, não posso impedi-lo", disse eu. "E em segundo lugar, pode ser muitas coisas, mas esfaimada duvido que seja neste momento." Constance estremeceu. "Acha que o pobrezinho sofreu muito?", veio mais uma das perguntas desnecessárias dela. "Tudo indica que sim", disse eu. "Por outro lado, é certo que pode ter estado a chorar por pura birra. As crianças às vezes são assim." Era quase noite cerrada quando de repente emergimos em plena estrada. O clarão de uns faróis e o chiar de um motor passaram por nós simultaneamente a uma proximidade inquietante. Um baque e o som agudo de um guincho seguiram-se um segundo depois. O carro parou, e quando dirigi a montada para o local deparei com um homem novo curvado sobre uma massa escura imóvel estendida na berma. "Matou a minha Esmé", exclamei azeda. "Lamento imenso", disse o jovem. "Sou criador de cães, e compreendo como se deve sentir. Farei o que puder para a compensar." "Faz favor de a enterrar imediatamente", disse eu. Acho que tenho o direito de lhe pedir isso." "Traz a pá, William", ordenou ao chauffeur. Via-se que funerais improvisados nas bermas das estradas eram contingências que estavam previstas. Levou algum tempo a cavar uma campa suficientemente grande. "Sim senhor, um sujeito respeitável", disse o cavalheiro, ao mesmo tempo que o cadáver era rolado para a vala. "Dá a impressão que devia ser um animal de bastante valor." "Ficou em segundo lugar, em Birmingham, na categoria de cachorros o ano passado", disse eu com desembaraço. Constance fungou ruidosamente. "Não chore, querida", disse eu numa voz entrecortada. "Foi tudo rapidíssimo. Não deve ter sofrido muito." "Por favor", disse o jovem num tom sentido, "tem de me deixar fazer alguma coisa como forma de a compensar." Recusei delicadamente, mas como ele insistia acabei por lhe dar a minha morada. Naturalmente, não dissemos palavra sobre os episódios do princípio da noite. Lord Pabham nunca anunciou o desaparecimento da sua hiena; há um ano ou dois um animal estritamente frutívoro saíra do parque dele e vira-se obrigado a pagar indemnizações em onze casos de acidentes com ovelhas e praticamente repovoara as capoeiras dos vizinhos; por isso, uma hiena à solta era capaz de equivaler a qualquer coisa à escala de um subsídio do Governo. Os ciganos mostraram-se igualmente discretos quanto ao desaparecimento do filhote; não me parece que nos grandes acampamentos eles saibam, mais filho menos filho, quantos têm ao certo. A Baronesa fez uma pausa com ar pensativo, e depois continuou: Mas a aventura teve uma sequela. Recebi pelo correio um pequeno alfinete de diamantes amoroso, com o nome de Esmé gravado num raminho de alecrim. Por acaso, também, perdi a amizade de Constance Broddle. Está a ver, quando vendi o alfinete recusei-me com toda a razão a dar-lhe qualquer parte do lucro. Fiz notar que a parte Esmé do caso tinha sido inventada por mim, e que a parte hiena pertencia a Lord Pabham, se realmente a hiena era a dele, coisa de que, evidentemente, não tenho nenhuma prova.

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