quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Um Artista da Fome - Parte III

por Franz Kafka

Porque é que tinha que acabar agora que quarenta dias haviam já passado? Era capaz de aguentar muito mais, aguentava infinitamente; porquê acabar no melhor momento, ou antes mesmo de atingir o melhor momento de jejum? Porque é que o privavam da glória de poder continuar a jejuar, de ser não só o maior artista da fome de todos os tempos, que provavelmente já era, mas de se superar a si próprio, até ao inconcebível, dado que não encontrava limites para a sua capacidade de jejum. Porque é que esta gente que dizia tanto o admirar, porque tinham eles tão pouca paciência; se ele era capaz de suportar o prolongamento do jejum, porque não eram eles também capazes de o fazer? Além disso estava cansado, estava confortavelmente sentado na palha e obrigavam-no a levantar-se e a aproximar-se da comida que só de imaginá-la lhe subiam os vómitos que com esforço continha por respeito para com as senhoras. E olhava para cima, olhava para os olhos das senhoras aparentemente amáveis mas na verdade cruéis e abanava a cabeça demasiado pesada para o fraco pescoço que a sustentava. Acontecia então o que sempre acontecia. O empresário aproximava-se, levantava silencioso - a música não permitia qualquer discurso - os braços por trás do artista da fome como se convidasse o céu a observar a sua obra aqui sentada no meio da palha, este mártir lamentável que o artista da fome era de facto mas num sentido completamente diferente; agarrava o artista da fome pela cintura fina e exagerando o cuidado com que o fazia tentava criar a ilusão de que segurava um objecto altamente delicado; e entregava-o - isto depois de o sacudir um pouco sem que o público o notasse, fazendo com que as pernas e o tronco do artista da fome baloiçassem para um lado e para o outro - às senhoras que entretanto tinham ganho uma palidez de defuntas. Nesta altura o artista da fome já a tudo se submetia; deixara cair a cabeça sobre o peito e era como se se tivesse enrolado sobre si próprio e assim se mantivesse inexplicavelmente; o corpo escavado; as pernas, apertadas uma contra a outra ao nível dos joelhos em instinto de conservação, raspavam o chão como se aquele não fosse o chão verdadeiro, como se ainda procurassem o verdadeiro chão; e todo o peso, peso por sinal levíssimo, do seu corpo repousava sobre uma das senhoras que, à procura de ajuda, a respiração ofegante - não fora assim que imaginara o cargo honorário - começava por endireitar o pescoço o mais possível para evitar que pelo menos o seu rosto tocasse no do artista da fome, mas depois, sentindo que a experiência falhava e que a sua colega, mais feliz, em lugar de a ajudar, se limitava a segurar a medo a mão do artista da fome, esse pequeno embrulho de ossos, a senhora rompia em lágrimas que escorriam sob as gargalhadas entusiastas da sala até que um funcionário, já há muito preparado para o efeito, dali a levava. Vinha então a comida que o empresário enfiava na boca do artista da fome adormecido numa espécie de sono que mais parecia um desmaio; e ao mesmo tempo que o alimentava, o empresário falava animadamente esforçando-se por desviar a atenção do público do estado em que o artista da fome se encontrava; pedia-se depois ao público um brinde, pedido que teria sido supostamente sussurrado pelo artista da fome ao ouvido do empresário; a orquestra reforçava tudo isto com uma grande fanfarra, as pessoas dispersavam e ninguém tinha o direito de se considerar descontente com aquilo a que acabara de assistir, ninguém, tirando o artista da fome, sempre e apenas ele.

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