segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Um Artista da Fome - Parte I

por Franz Kafka

O interesse por artistas
da fome diminuiu muito nas últimas décadas. Se antigamente a organização por conta própria deste tipo de espectáculos trazia o seu lucro, hoje em dia isso seria absolutamente impossível. Os tempos eram outros. Na altura toda a cidade seguia o artista da fome; a cada dia do seu jejum aumentava a afluência; todos queriam ver o artista da fome ao menos uma vez por dia; nos últimos dias inscreviam-se pessoas para poderem ficar sentadas o dia inteiro em frente à pequena jaula; até durante a noite, à luz de archotes que aumentavam o efeito, apareciam visitantes; em dias de sol trazia-se a jaula para o exterior para que o artista da fome fosse mostrado às crianças; se para os adultos o espectáculo não passava de um divertimento no qual participavam porque estava na moda, as crianças, por seu lado, estarrecidas, as bocas abertas, segurando as mãos umas das outras para se sentirem mais seguras, as crianças observavam a palidez do artista da fome, observavam o maillot preto por trás da qual sobressaíam poderosas as suas costelas, observavam-no sentado na palha, visto que rejeitava qualquer cadeira, a acenar de tempos a tempos por cortesia, viam-no responder a perguntas com um sorriso forçado, a esticar o braço para que lhe pudessem sentir a magreza, mas logo se afundando em si próprio, porque todos lhe eram indiferentes, até mesmo o bater, para ele tão importante, do relógio, única mobília da jaula, limitava-se a olhar em frente, de olhos quase fechados e a bebericar aqui e ali de um minúsculo copito de água para humedecer os lábios.


Além dos diferentes espectadores que iam passando, havia também uns guardas permanentes, normalmente e curiosamente talhantes de profissão, que eram escolhidos pelo público e que tinham por função vigiar o artista da fome dia e noite, e sempre três de cada vez, para que ele não pudesse de maneira nenhuma ingerir qualquer alimento. Isto não passava porém de uma formalidade introduzida para satisfação das massas, dado que os verdadeiros aficionados sabiam perfeitamente que durante o período de jejum o artista da fome nunca, sob quaisquer circunstâncias, nem sequer se a tal fosse forçado, comeria a mais pequena migalha; proibia-o a honra da sua arte. Claro que nem todos os guardas eram capazes de o compreender, havia grupos de vigia nocturna que executavam o seu trabalho de forma desleixada, sentavam-se a jogar às cartas num canto propositadamente afastado com o objectivo de conceder ao artista da fome um pouco de descanso que, pensavam eles, seria por ele utilizado para sacar de umas provisões secretas. Este era o tipo de guardas que mais torturava o artista da fome; entristeciam-no; ficava-lhe muito mais difícil jejuar; por vezes suplantava a sua debilidade e cantava durante todo o tempo que durava a vigília, cantava até não mais poder para mostrar às pessoas como eram injustas as suas suspeitas. Mas isto de pouco lhe servia; os guardas ficavam apenas impressionados com a habilidade do artista da fome que era capaz de comer enquanto cantava. Gostava muito mais daqueles guardas que se sentavam bem junto às grades, e que, não satisfeitos com a sombria luz nocturna da sala, o iluminavam com lanternas eléctricas postas à sua disposição pelo empresário. A forte luz não o incomodava, fosse como fosse não dormia e de qualquer das formas era sempre capaz de dormitar sob qualquer iluminação e a qualquer hora, mesmo numa sala sobrelotada e barulhenta. Estava disposto a passar a noite acordado com esses guardas; estava disposto a divertir-se com eles, a contar-lhes histórias da sua vida nómada e a ouvir também as histórias deles, tudo isso para os manter acordados, para lhes poder mostrar que não guardava nada de comestível dentro da gaiola e que jejuava como nenhum deles era capaz. O maior momento de felicidade chegava contudo com a manhã e com um pequeno-almoço cujo custo era suportado pelo próprio artista da fome e ao qual os guardas se atiravam com o apetite de homens saudáveis após uma longa noite de vigília. Havia apesar de tudo quem quisesse ver neste pequeno-almoço uma tentativa corrupta de subornar os guardas, mas isso já era ir longe demais, e quando lhes perguntavam se, em nome da causa, eram capazes de fazer a vigia da noite sem pequeno-almoço, esquivavam-se na resposta, mantendo porém teimosamente as suas suspeitas.

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