terça-feira, 19 de agosto de 2008

Remoçar Extinto

"Diz-me se voltaste para ficar, exigiu atónito ao espelho. Forjaste a passagem de novo, passados anos de clausura e esquecimento. Sorriu sem querer e levou à boca o último pedaço de língua. À sua volta tudo parecia voltar ao que havia sido em tempos. Recolhido na prateleira, o retrato de Lilia voltou a cair, já corria vento pela janela e as manchas negras desapareceram por completo da sua alma, do seu corpo e do seu quarto. Pela primeira vez em décadas queria falar com alguém. Saber do mundo e das pessoas. Perguntava-se se não seria tempo de voar como os pássaros, apesar de ainda ter muito para conhecer na Terra. Lembrou-se, então, do seu velho amigo Rodrigo. Um erudito como ele, saberia com certeza aconselhá-lo a seguir o caminho mais feliz, ou então o que tivesse um fim mais feliz, ou então aquele onde a escassa felicidade não conduzisse à infelicidade. Rodrigo tinha corrido o Mundo, escalara a mais alta das montanhas, mergulhara no mais profundo dos oceanos, bebera do sangue sagrado de Deus, mas daquele que dá por vários nomes. Rodrigo era astuto, ávido de conhecimento, estivera com mais de 100 mulheres na altura e não conseguia estar quieto. Talvez tivesse medo de si próprio. Prescrito o acto, reduzida a ânsia e retratada a dor, renasceu o corno polido e brilhante de orgulho. A realidade ultrapassara a decepção. Era como um admirável mundo novo já vivido e já sofrido, com cicatrizes dissimuladas, urdidas pelo tempo. O velho boneco de trapos voltara a sorrir, já não lhe fazia falta outro botão para ver melhor."

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