quarta-feira, 28 de maio de 2008

A Janela de Lilia

"Voltei a sonhar que estava acordado, sem redes, sem grades. Estava enjoado e agoniado, mas sem redes e sem grades. Liberta a mente, liberta o espírito, liberta o Mandela, diziam nas ruas. Tinha exagerado no ketchup e a Lilia ria-se de mim. A Lilia ria-se de quase tudo, tinha um sorriso de sonho, mas eu gostava mesmo, era quando se ria de mim. Imagino o quarto em que vivi 12 anos, como a personagem dum livro que li. De cada vez aparece um pormenor novo, talvez seja absurdo, mas ajuda a passar o tempo. Gosto de a imaginar à janela, como no dia em que soube que era minha. Um vestido de alças, simples, como ela, com um guarda-chuva na mão, negro, como eu. Já não sonho com luxos, já não tenho ambições desmedidas. O buraco enegrece a alma e faz da vida, um ritual da morte. Já não quero sobreviver, já não sei como o fazer. Dizem que o tempo sara as feridas, no meu caso vai rasgando-as cada vez mais e nem o cura conhece a cura. Hora de esfregar o chão. Círculos concêntricos sobre vértices e arestas de polígonos regulares. Assim dizia o Biel, nunca entendi bem o significado, tirando a parte do regular. A Lilia estudava para ser professora e um dia explicou-me o que queria dizer. Falou-me sobre a formação das palavras e sobre as suas origens. Nem sempre tomava atenção enquanto olhava o seu rosto de anjo, mas passei a distinguir o conjuntivo do reflexo. Aproxima-se a noite e depois chega o dia. Pareço música num disco riscado que não dá para deitar fora. Vou voltar a recordar o meu quarto e tentar acordar de novo no Cabo. Prefiro o enjoo do ketchup à maresia fétida de clausura séptica. Parti de encontro a uma Lua sem luar e encontrei Lilia, sem voz e sem ar. Corri a pegá-la, tratei de salvá-la e supliquei ao embalá-la: fica!"

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